Gestão

Alice nas cidades, Wim Wenders

Enquanto pensava nas palavras que ouvira inadvertidamente no seu caminho de volta pra casa, perdeu a oportunidade de examinar a origem daquele enunciado. Mas talvez a questão não tenha sido essa, porque, mesmo atordoada com a confusão, o portador de uma voz carregada de palavras tão contundentes não conseguiria se esconder do lampejo ocasionado pela força assertiva que imprimiu no ar. Sua primeira reação só poderia ter sido uma alerta para defesa, um olhar atento à procura de um inimigo. De qualquer forma, já era tarde, cabia-lhe apenas agir a partir das consequências que permaneceram, o que a levou a observar detidamente as extremidades do próprio corpo: seus movimentos não lhe pertenciam, a despeito de poder controlá-los.
A calçada estava movimentada, e antes que começasse a atrair atenção demais para si, dirigiu-se a uma esquina mais reservada. Sentou-se no meio-fio, desatou a sandália e colocou os pés ainda úmidos no chão. Qual foi a última vez que pisou descalça num asfalto? Sentiu as nuanças de todas as irregularidades grosseiras que o constituíam, além dos ciscos ásperos que pouco a pouco grudavam na sola do pé.
O lugar não era afeito a um desejo de movimento. É certo que havia transeuntes a caminho das mais diversas determinações, mas isso não era suficiente para lhes incumbir gestos minuciosos: nada os incitava a ponderar se a performance mais precisa de um gesto lhes daria condições de realizar uma vontade inédita. Apesar de todo o espaço e de todas as possibilidades, havia uma legislação tácita, capaz de corrigir o menor desvio com um constrangimento voluntário ou com uma ressignificação. Mas não queria ser artista, seu desejo era apenas — se é que se pode dizer “apenas” — arquear as costas no chão e elevar os dedos dos pés à maior distância ao seu alcance.
Sentada atrás de um carro e com o queixo entre os joelhos, permaneceu ali, em repouso, esperando que seus dedos manifestassem um acordo.