Lapsos de um Velho sem Estoque de Vento
Ilustração: Pedro Marques
Texto: Fernanda Almeida
Tempos atrás, num daqueles meses com gosto de chulé e miojo e que moedas são contadas e caçadas em cada buraquinho, peguei raiva de um velho rabugento que me negou um adiamento. O velho da boca fina e murcha. Esse velho avarento e com uma simpatia de quem deve ser muito ruim se lambido mais de perto não me deixou pagar no outro dia uma caixa para ser esvaziada em fumaça, mesmo que todos os dias eu lá passasse pra comprar a mesma caixa de bitucas com avisos horrorosos. Setenta e cinco centavos a mais em cada caixa, se for no cartão. Escutava por ali o olhar raivoso dos funcionários atrás do balcão e a ira de quem lutava com a TV por não encontrar nenhum canal religioso: o micróbio já havia tomado todo o espaço da comunicação. Micróbio que muda o destino, cobrindo a boca, espantando os olhos e deixando o nariz ali sobressaltado como uma arma apontada para qualquer inocente passante.
O velho avarento tem sido uma das pessoas que mais vejo quando saio da minha caixa pra ir comprar um pão seco, um brigadeiro ruim, uma porçãozinha de buraco sempre a 75 centavos a mais. Ora ele esconde a arma-nariz, ora ele a deixa ali apontada para a mulher à espera de uma criança, em uma cena quase pornográfica de fluidos transando no ar. Até troquei um dedo de prosa com ele sobre métodos de proteção; dizia que a camisinha de amarrar era mais confortável do que a de elástico, não apertava tanto as orelhas e nem incomodava tanto o nariz. Ao final, ele me disse que procuraria saber mais com a moça de quem ele comprava os métodos contraceptivos. E eu fiquei ali com os pensamentos soltos torcendo para que ela já não estivesse grávida.
Não foi a primeira vez que troquei um dedo de prosa com o narigudo. Ele perdeu um dedo, já que na realidade não houve a prosa. Com a bola em campo, o dito cujo aterrorizava os cachorros da vizinhança se explodindo em rojões e barulho. Vocês precisavam ver o brilho em seus olhos enquanto o ar se expandia e causava ruído. Eu ali perplexa e irritada assuntei para que parasse com aquele espetáculo triste. No outro dia, ele perdeu o dedo que explodiu em meio aos estrondos. Será que perderá o nariz? Confesso que chequei para ver se era o mesmo dedo perdido por um sindicalista metalúrgico, há alguns anos.
O micróbio já estava naquele dedo, ele já estava no ar há mais tempo do que imaginávamos. Engravidara 30% da população antes de dar o ar de sua desgraça. A gestação durou uns sete ou quinhentos anos. O parto foi estridente e a hemorragia parece não ter fim.
Enquanto sou tomada pelos pensamentos sobre o velho, ouço o barulho da máquina de lavar. Isto foi uma das consequências do tal micróbio: escuto barulhos que aumentam a cada dia, de gritos a sussurros eles invadem o apartamento me lembrando que som e micróbio se propagam pelo ar.
Prendo a respiração.
As sacolas-balões se inflam na janela. Achei bonito, parei o que estava fazendo, vim escrever e respirei fundo:
− Quisera eu estar estocando vento!