Recalque
A porta está fechada. Ainda bem que está, assim é melhor para anunciar a minha chegada. Não sei lidar muito bem com a situação de chegar a um lugar onde as pessoas estão concentradas e devo de alguma maneira chamar a atenção para mim.
Enquanto hesito, ouço a porta ao lado se destrancando. Será que aqueles contadores ainda trabalham aí? Nosso diálogo nunca foi maior do que uma troca de bons-dias, a não ser aquela vez que ajudei um deles a se levantar depois de um tropeço na escada. Se for ele — o rapaz de madeixas brancas, lembro-me bem –, posso perguntar se tem alguma notícia dos seus vizinhos. Conforme for, vou embora sem nem bater à porta.
Assim que a pessoa surgiu, procurei pelas madeixas. Minha postura foi um tanto incisiva, o que o fez me acenar enquanto trancava a porta do lado de fora. Respondi, mas automaticamente, porque só tive certeza que era ele quando o vi de costas. Se não o tivesse encarado tanto, provavelmente teria pegado seu caminho sem dar aquela satisfação. Deve ter me reconhecido. Quer dizer, ele me reconheceu desde o instante em que abriu a porta, então acenou, não para insinuar que me conhecia, mas para dizer que fingia que me conhecia.
Ergo a mão, mas em vez de bater, aliso a porta. Por alguns instantes me pergunto se é oca ou maciça. Não sei se realmente fará alguma diferença revê-los. O que são além do que já sei sobre eles? Muito mais, não duvido, mas como desconheço, não estou nem aí. Não é esse ato que me fará descobrir alguma coisa.
Dou de ombros e desço determinado a escada. Constrangido, me sinto tolo por ter estado ali. Já com a calçada sob os meu pés, uma mulher se aproxima — acho que trabalha no comércio ao lado. Quando voltar, entrega isso pra eles, por favor, diz e se afasta antes que eu consiga me lembrar do seu nome.