Desposição

medo-do-escuro

O lugar não tem esquina, a última foi a que me deixou aqui. Tudo é reto e plano, e a única coisa que me impede de ver algo é a distância — o longe parece uma substância entre meus olhos e o que poderia ser visto. Enquanto nada se apresenta, meus passos são movimentos estéreis: se eu não soubesse que a função deles é me deslocar, provavelmente não estariam se movendo. Sei que pensei isso antes daquilo, mas desconheço se pensei isso há muito ou pouco tempo.
Algo parece se divisar à minha frente. Aperto meus olhos. Estão as imagens antes das coisas? Estou num estacionamento de caminhões de lixo. Pulando na traseira dos caminhões, os coletores gritam e assoviam freneticamente,  enquanto os motoristas fazem os motores roncar como monstros embriagados. Percorro os espaços em forma de fileiras, à procura de um fundo, de um atrás. Preciso me agachar para desviar dos chutes e socos que os coletores lançam contra mim. Deparo-me com um muro, que é também uma pilha de escombros. Olho para os dois lados: são iguais. Escolho por um deles sem uma motivação notória. Caminho caminho caminho. A fumaça, o barulho e o sol me irritam. Encontro um carro, parece ter gente lá dentro. São muitas crianças. Os vidros embaçados e a falta de espaço entre elas me impedem de contá-las. Puxo uma maçaneta. Todas estão emperradas. Vou até o muro em busca de uma pedra. Um cheiro acre intenso me provoca ânsia de vômito antes do alcance dos meus braços. Saindo das fileiras, uma espécie de bedel vem em minha direção. Calça um tênis branco reluzente, produzindo um contraste do qual se aproveita para impor a assertiva de seus preceitos. Enquanto vocifera, protejo meus olhos do reflexo oriundo dos seus pés. Distingo apenas isto do seu discurso:
Talvez não tenha ainda tido tempo pra esses tipos de considerações — veja, não consigo imaginar uma situação diferente em que a sua compreensão sobre o que tem acontecido com você não te cause conflitos inordinários, e é bastante plausível que espere de mim a não redescompreensão da sua aflição originária de uma incongruência intelectual, afinal, a mera circunstância de poder me ver, e não duvido que você acredita que seja uma espécie de reconhecimento, nos coloca num espaço que sugere possibilidades de conformação –, mas acho que deveria se perguntar onde tomei meu café da manhã e se a cozinha que deve estar a uma distância daqui que não nos leve à fome quando chegamos depois de lá ter saído tem banheiro — um elemento coadjuvante, vale ressaltar, sobretudo devido à nossa condição originária adaptada, mas não confortável, ao que não precisa de uma intervenção técnica aprimorada pelo legado histórico que se tornou possível pela escrita –, dado que num entendimento não irrazoável uma percepção translúcida de azulejos costuma denotar um tipo de preocupação que só ocorre quando certos problemas já se encontram resolvidos — uma situação que você deveria procurar, digo isso discretamente para que não fique envergonhado –, não é à toa que por isso tenho azulejos em minhas solas — não no sentido trivial da sua imaginação que falhou, depois que mencionei o banheiro, em imaginar um espelho sobre a pia, mas no sentido de que minhas solas são de azulejo –, tanto é que já me-as-tomaram de empréstimo para romper os vidros para os quais você procurava uma pedra, só que isso é não indesdesejável: as crianças fogem para debaixo dos caminhões, e depois vem a polícia, que me ridiculariza.