Dois tapetes e uma bandeja

a tortura do medo

Atravessa a sala distribuindo satisfação como se fosse esmola. Caminho ao seu lado, às vezes olhando pra cima pra ouvi-lo melhor. Não posso negar, realmente aquele prato foi sensacional, eu estava inspirado mais do que de costume naquele dia, disse a um que o interrompeu durante o seu trajeto. Um pouco à frente, uma mulher que acredito conhecer. Está de costas, muito bem vestida e gesticula em sua interação. A fala é dela, as atenções estão nela. Sigo caminhando ao lado da figura imponente, colhendo olhares que sobram — mas que imediatamente se desviam ao se darem conta do descuido de não percorrer o que importa. Pressagio um mal-estar: a confluência de atenções a destinos distintos causaria um colapso nas normas da boa aparência. Jogo com força meu ombro esquerdo sobre a figura imponente. Inútil, mal alcanço sua cintura. Seu sorriso resplandece com o fulgor do que se espera de uma menção previamente evidenciada. Sem interromper a minha obstinação, desato um de seus cadarços num movimento ágil, à espera de que um tropeço restaure o equilíbrio das pretensões. Olho novamente para a mulher que julgo não me ser estranha. Seria a mesma que uma vez disse depois de suspiros lascivos, A introspecção de seus lábios permeia o desalento de minhas prerrogativas? Calculo a distância que conduz ao colapso insuspeitável: há ainda pela frente dois tapetes e uma bandeja, cuja decifração do conteúdo pode voltar-se contra a posição de classe de quem se incumbe dessa tarefa. À minha direita, noto a presença de um filósofo fora de forma, também relegado à sobra de olhares. As pontas soltas do cadarço resvalam nas franjas finais do primeiro tapete. O filósofo fora de forma, num gestual fidedigno, manifesta-se cúmplice da minha atitude, tanto que leva o tema aos argumentos que professa. Infelizmente, não serviu pra nada, e isso por causa de dois motivos: a) sua memória lhe traia — além de tratar os conceitos de maneira imprecisa, não os relacionava aos filósofos corretos; b) a extensão dos seus argumentos era maior do que a atenção que recebia. Apesar da sua manifesta boa vontade, censurei-o pelo ponto b. Quem sabe não fosse por isso eu não precisasse torcer para que a contingência favorecesse o movimento daquele cadarço? A figura imponente está agora diante da bandeja. Só consigo ver a parte debaixo e sentir os farelos que caem na minha cabeça. Ele tece um comentário, ao qual todos aquiescem, seguros de que apenas confirmam o que já sabiam. Ele diz que estava brincando, e todos riem, porque sabiam que ele estava brincando. A figura imponente deixa a bandeja e continua o caminho sobre o tapete que ainda resta. Uma ponta do cadarço finalmente intervem no fluxo dos seus passos. Ele olha para baixo e se sente injustamente vitimado pelas circunstâncias. Apenas duas soluções lhe vêm à cabeça: a) amarrar o cadarço ali mesmo; b) ir ao banheiro. As duas alternativas se chocam como premissas que se debatem pela conclusão de um dilema. A primeira opção envolveria a contundência de se agachar. Quanto à segunda, teria que ir mancando até o banheiro, no entanto se alguém o visse nesse estado, logo o questionaria sobre o porquê, cuja resposta implicaria a reação mais óbvia, Então por que não amarra? Mas isso desnudaria seu embaraço em relação à postura dedutível desta ação. Esgotado, encontra-se em más condições para falsificar a espontaneidade da sua aparência. Acompanhando os olhares que pregressivamente o abandonam, deparamos, ele e eu, com a mulher que acredito conhecer. Aproximo-me da sua atenção. Seu olhar me atravessa sem me notar — realmente é ela. A figura imponente permanece acuada sob a força do dilema. Todo o seu corpo é um anseio por deliberações nefastas. Com o contentamento efêmero ocasionado pela sensação de liberdade que se manifesta no cumprimento de um dever autoimposto, vou embora.