É a morte ruim (para quem morre)?

pasoline-gavioes

A perda de um ente querido pode ser uma das piores dores vivenciadas no curso de uma existência, mas não é a essa morte que me refiro. Refiro-me à morte que nos sucede em primeira pessoa, não à morte do outro, diante da qual permanecemos vivos. É a partir dessa reflexividade que se instala um problema filosófico: como podemos julgar se morrer é bom ou ruim, uma vez que, ao morrermos, imediatamente somos impossibilitados de fruir qualquer qualidade que poderíamos atribuir à nossa própria morte?

Em geral, na filosofia esse problema é discutido a partir da seguinte citação de Epicuro:

Assim, a morte, o mais assustador dos males, não é nada para nós, pois enquanto existimos a morte não está com nós; e quando a morte chega, já não existimos. Dessa forma, ela não é uma preocupação para o vivo ou para o morto, pois para o primeiro ela não existe, e o segundo não existe mais.

(Tradução livre de: So death, the most terrifying of ills, is nothing to us, since so long as we exist death is not with us; but when death comes, then we do not exist. It does not then concern either the living or the dead, since for the former it is not, and the latter are no more.)

No argumento de Epicuro, o que é bom ou ruim consiste num sentimento — entendido aqui num sentido amplo, como dor, prazer, estados emocionais, etc. –, e como a morte é a privação de todos os sentimentos, ela não pode ser boa ou ruim para quem morre. Numa palavra, para que pudéssemos saber se a nossa própria morte é ruim deveríamos estar vivos, mas isso seria contraditório.

Há outras coisas, além de sentimentos, que podem ser boas ou ruins, mas, neste caso, tais coisas não são intrinsecamente boas ou ruins, são instrumentalmente boas ou ruins — e assim o são porque estão entrelaçadas numa cadeia que em algum ponto está ligada a algo intrinsecamente bom ou ruim. Isso quer dizer que, para que algo seja bom ou ruim, esse algo deve ser: a) um sentimento — que é bom ou ruim em si; ou b) alguma outra coisa que de algum modo leve a um sentimento. Por exemplo, fumar não é intrinsecamente ruim, pois pode não envolver um sentimento ruim no momento em que exercemos esse ato, no entanto, podemos dizer que fumar é instrumentalmente ruim porque pode provocar certas doenças, as quais estão ligadas a sentimentos ruins.

Cumpre observar que quando aqui falo de morte não falo sobre o processo de morrer. É inegável que o que antecipa a morte pode envolver um sofrimento excruciante, basta imaginarmos casos de pessoas que morrem sob tortura ou certos casos de doenças crônicas terminais. Em tais circunstâncias não é incomum afirmar que a morte é um alívio, justamente porque ela demarca o ponto onde o sofrimento é aniquilado com o fim da existência. Nesse sentido, é esclarecedora a expressão “golpe de misericórdia” — presente em vários idiomas, como no francês, coup de grâce, no espanhol, el tiro de gracia, e no inglês, mercy shot –, que se refere ao fato de tirar a vida de um ser vivo (humano ou não) ferido gravemente e em agonia, sobretudo se não há esperança de que ele se recupere dessa condição.

Dito isso, o argumento de Epicuro, que também chamarei de argumento hedonista, pode ser sumariado da seguinte maneira:

1) Apenas sentimentos podem ser intrinsecamente bons ou ruins;

2) Tudo o que é bom ou ruim é intrinsecamente ou instrumentalmente bom ou ruim, i.e., em último caso, deve haver um sentimento envolvido;

3) A morte põe fim a todos os sentimentos;

4) Logo, nada pode ser bom ou ruim a um morto, seja intrinsecamente ou instrumentalmente.

Uma maneira de atacar esse argumento é recusando a premissa de que apenas as sensações podem ser intrinsecamente boas ou ruins. Thomas Nagel é um dos filósofos que argumentam nessa direção. De acordo com ele, existem coisas que nos fazem mal a despeito de não infligirem em nós nenhum sentimento ruim. Em seu argumento, Nagel analisa a situação hipotética de uma pessoa que, sem saber, é traída, ridicularizada e desprezada por seus amigos — apesar de ser bem tratada quando na presença deles. Se concordarmos com o argumento hedonista, não podemos afirmar que o comportamento dos amigos é ruim para essa pessoa, uma vez que ela ignora a conduta ignóbil deles. Mas não é assim que Nagel analisa essa situação. Para ele, é triste descobrir que fomos traídos, porque a traição em si é algo ruim, e não o inverso, ou seja, a traição não é ruim porque a sua descoberta nos entristece. Nas suas palavras: “[a] compreensão natural é que a descoberta da traição nos faz infelizes porque é ruim ser traído — não que a traição é ruim porque sua descoberta nos faz infelizes.”

Esclarecendo melhor, o que Nagel aponta como contraintuitivo no argumento hedonista é que ele dá a entender que, caso descobríssemos que fomos traídos, nossa indignação não deveria ser com o fato de que ser traído é ruim, mas com a displicência dos traidores, que permitiu que descobríssemos a traição. Em suma, a proposta de Nagel consiste em dissociar a condição de algo ser ruim da condição de que esse algo deve de algum modo estar ligado a um sentimento ruim. Efetuando esse passo, é possível concluir que a morte pode ser ruim para quem morre, apesar de ela cessar todas as sensações.

Por ora, me restringi a apresentar o problema colocado pelo título. Nos próximos textos (se o tempo não me atropelar), trarei novas opiniões em torno dessa questão.

Referências:

BENATAR, D. The Human Predicament – A Candid Guide to Life’s Biggest Questions, 2017.

LUPER, S. Death. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2021.

NAGEL, T. Mortal Questions, 1979.