Quase eu

a culpa

Até então era no máximo um rosto, além de um braço que segurava um aparelho. Se eu procurasse mais detalhes, só me restava recorrer a um encontro incidental. Estava sentada no chão, sandálias de lado e braços sobre o joelho. Mas mesmo dizendo pouco, ainda falsifico: minhas lembranças mais criam do que encontram. Talvez eu possa dizer que a voz era como a que eu guardava, porque não tive nenhuma surpresa. Agora é diferente. Sei localizar as figuras na parede e as coisinhas sobre a mesa, sei a cor do tapete do banheiro. Tenho à minha disposição alguns pares de roupas para vesti-la e também consigo deduzir se a janela está aberta.
Faz algum tempo que ando na casa dela sem esbarrar em ninguém. Quando apareço, geralmente é numa pergunta fortuita num encontro eventual com alguém dos que não vemos mais, nesses lugares em que o sorriso é magro, em que se olha para o lado e o disfarce se torna escasso, onde sou à medida que me escondem. Esquecer não é algo que se aprende. Só sabemos que esquecemos quando lembramos, quando nos damos conta de que há algum tempo não pensamos mais no que gostaríamos de esquecer. Pode ser que nessas horas as lembranças recomecem, mas isso já é um sinal de que o esquecimento começou a acontecer.
Foi mais ou menos por isso que nos esbarramos hoje. Não que eu tenha resolvido aparecer, pois não é possível resolver sobre essas coisas. Até mesmo este por isso não faz muito sentido. E a despeito de que ela jamais me chamaria por vontade própria, o que faço tampouco é uma invasão: a parte de mim que chegou até aqui é quase toda dela.