Fruição

la-jetee

Sentou-se à mesa da cozinha para tomar o café da manhã. A mera expectativa de comer um prato cujos ingredientes havia comprado com esmero e autonomia lhe antecipava a realização de um prazer não apenas sensual. Ainda que corriqueiro na aparência, isso significava o coroamento de uma conquista. Com os talheres suspensos e um sorriso interno, traçou alguns momentos decisivos: uma recusa precisa, um esforço na direção certa, as vezes que não se deixou abalar.

Diante de si a sala, que poderia ser seu quarto se quisesse. Sobre a geladeira, a maturidade em poder recepcionar as visitas — e com os copos apropriados. Não que chamasse a atenção para isso, o que talvez tenha feito mais jovem. Mesmo o “que nada, imagina” era desprovido do propósito de ocultação. Mas que sentido faz enfeitar as coisas, sendo que o resultado dificulta a finalidade principal? Não são meros detalhes, a partir de uma certa sensibilidade se tornam indispensáveis. Afinal, quantas vezes, por uma percepção instintiva, não agiu sobre conclusões arraigadas na composição estética do que fora vivenciado? Era capaz de atribuir — com acertos consideráveis — a dieta, a música e os lugares preferidos.

Tudo isso sem contar o significado do que está além das janelas, que impõe o seu sentido mesmo se revelado apenas de passagem. O brilho nos olhos quando ausente daquelas fronteiras dificilmente não era interpretado por pressupostos acerca da posição de sua morada. Para que um orgulho não declarado não se manifestasse em soberba — a despeito de que na maior parte das vezes esse controle não lhe pertencia –, destacava discretamente seus infortúnios. Outra medida era deixar transparecer suas características originárias, apesar de que, quanto mais o tempo passava, menos convincentes se tornavam.

Algo lhe chamou a atenção nos talheres. Não encontrava explicação para aquelas formigas. Aos poucos, outras se aproximavam do seu prato. Sacou um litro de álcool debaixo da pia, borrifou sobre a mesa e passou um pano. Diante do prato novamente, compreendeu que se já tivesse comido nada disso teria acontecido.