Sapataria

sapataria

Saí de casa pra resolver um problema de uma matrícula. Não encontrava o endereço. Perguntei prum cara passando na calçada. Disse que ali não tinha nenhuma escola, que era mais um negócio de laboratório. De todo modo, dei uma volta no prédio. Ao lado da porta principal, umas cinco pessoas formavam uma roda. Tinha um homem sentado no chão, escorado na parede. Deve ter tido uma mal súbito, pensei e continuei minha procura. Ao lado de uma das portas no fundo do prédio, vi uma placa com um logo que parecia ser o da escola. Dizia que era no terceiro andar. Não havia sinal de gente lá em cima. Dei a volta no corredor até encontrar uma porta que sugerisse ser uma secretaria ou algo do tipo. Bati. Sim? Disse que tinha recebido um e-mail e que procurava fulana de tal. Só um momento, ela já vem. Quando abriu a porta, pude entrever os pés de uma pessoa sentada a uma mesa à esquerda. A porta imediatamente se fechou atrás dela. Caminhamos pelo corredor na direção oposta à que eu tinha acabado de percorrer. Ela foi descrevendo o ambiente, essas são as salas de aula, essa é a cozinha, ali é a biblioteca… Entramos no que seria uma sala de convivência. Sentamos cada um numa cadeira de almofadas coloridas, um de frente para o outro. Conversamos sobre a matrícula e acertamos mais um par de detalhes. Num momento em que ela folheava os papeis, notei um par de sapatos debaixo da última prateleira da estante atrás dela. Depois de nos despedirmos, fui ao banheiro, não queria ficar apertado durante o caminho de volta. Notei um barulho vindo de uma das cabines atrás de mim. Confirmei que estava ocupada ao ver os pés apontados para fora, devia estar cagando. Na saída, o rapaz continuava sentado no chão, mas agora sem as pessoas em volta. Estava vestido como se trabalhasse em algum escritório daquele prédio. Tinha um dos joelhos flexionado, sobre o qual estendia o seu braço esquerdo. Seu olhar era fixo e o mundo ao redor lhe parecia inexistente. Passei ao seu lado como se não o visse, mas não pude deixar de notar os seus sapatos, pois eram iguais aos sapatos da pessoa na cabine do banheiro. Destranquei a minha bicicleta, no outro lado da rua. Voltando para casa, não conseguia imaginar o que presenciei sem colocar o mesmo sapato em todas as cenas.

Chegando em casa, a primeira coisa que fiz foi procurar na internet um especialista em sapatos, desses que sabem dizer com precisão se um sapato é igual ao outro. Por telefone, me disse que seria um pouco complicado fazer um laudo preciso a partir de informações recuperadas apenas da minha memória, mas que toparia assumir o caso. Fiquei receoso quanto ao preço que cobraria. Disse-me que seria de graça, pois suspeitou que o meu caso poderia ajudar na solução de um problema que investigava. Marcamos um encontro numa sapataria abandonada ao lado do aeroporto. Ele trouxe consigo dois pares de sapatos. Explicou-me que eles eram semelhantes, mas não idênticos, e para provar colocou um dos pares na sala ao lado, fora do nosso campo visual. Disse-me para observar bem o par que estava na sua mão, depois pediu para eu observar o par na outra sala. Então, é o mesmo par? Perguntou-me gritando do outro lado. Respondi que sim. Não, não é o mesmo par, revidou e me chamou pra sala onde estávamos. Daí ele pediu pra eu espalmar as mãos, fazendo o mesmo. Começou a falar que nossas mãos são parecidas e que mesmo que se fosse possível torná-las bem semelhantes elas ainda não seriam as mesmas. Argumentei que isso não era um bom exemplo, já que não existe nada mais óbvio do que saber que a própria mão não se confunde com a mão de outra pessoa. Ele concordou, mas insistiu na ideia de comparar as mãos dos outros. Assim, da mesma forma que eu vi a mão da pessoa que conferiu os meus documentos no andar de cima e não suspeitei que fosse a mesma mão de qualquer outra pessoa que vi no andar de baixo, eu poderia concluir algo semelhante em relação aos sapatos. Acontece que não se pode trocar de mãos como se troca de sapatos.

Mas ele não se deu por satisfeito. Gesticulando-se ao redor da sala, apelou para outro argumento. Falou-me sobre a possibilidade daquela sapataria. Disse que aquele lugar floresceu no passado justamente por causa da possibilidade de existir pares de sapatos semelhantes em lugares distintos, de maneira que as pessoas poderiam ter sapatos parecidos apesar de não serem as mesmas. Achei estranho e observei que pela mesma lógica poderia acontecer de uma mesma pessoa ter vários sapatos iguais, bastaria não distribuí-los a pessoas diferentes. De pronto se voltou pra mim e respondeu que eu estava certo, que, de fato, todo o alvoroço em torno das sapatarias vinte anos atrás não teria ocorrido se não fosse isso que eu tinha acabo de falar. Durante o silêncio que se seguiu, lembrei-me das fotografias espalhadas na casa dos meus pais. Quase sempre podíamos distinguir uma ou outra sapataria ao fundo, algumas das quais rememorávamos com entusiamo. Lembro-me especialmente de uma que tinha sorvete gratuito e piscina com tobogã.  

Depois de me cobrar a atenção, fixou seu olhar nos meus olhos e me perguntou com uma certa austeridade na voz se seria possível que o homem sentado no chão fosse a mesma pessoa cujos pés vi no banheiro. Assumindo que o homem estivesse realmente passando mal e considerando o fato de que saí do banheiro antes dele, isso parecia pouco provável. Reforcei essa condição e acrescentei que, se levássemos essa hipótese realmente a sério, deveríamos também assumir que o homem passando mal estava não só sentado à mesa da secretaria como também atrás da estante. Sem desviar o olhar, me perguntou se o homem estava descalço quando o vi pela primeira vez, ainda com as pessoas ao seu redor. Disse que não me lembrava, quem sabe porque seus pés estivessem cobertos pelo grupo de pessoas que o cercava. De todo modo, não entendi aonde ele queria chegar. Sugeriu que poderia se tratar de pessoas semelhantes. Continuei sem entender, afinal o que isso tem a ver com estar descalço ou não? Por que uma pessoa descalça seria diferente da outra? Além disso essa hipótese parecia estar nos levando a outra direção, pois o ponto principal era descobrir se os sapatos eram iguais, não se as pessoas eram iguais. Ele então me disse que dificilmente uma pessoa tira os sapatos durante uma jornada de trabalho, que tirar os sapatos é uma característica marcante da condição de que o expediente chegou ao fim. Apesar de achar pertinente essa observação, continuei sem entender o seu ponto. Se os sapatos no banheiro eram os mesmos da pessoa sentada no chão, que diferença faria se ela estivesse antes descalça? Argumentou que a pessoa no banheiro poderia ter lançado os sapatos pela janela. Não me convenci, pois levando em conta o que ele próprio tinha acabado de dizer, o rapaz do banheiro teria que estar no fim do expediente. No entanto, não era um horário de troca de turnos quando estive lá. Além do mais, a pessoa no chão poderia simplesmente trocar de sapatos ao receber os sapatos arremessados, ou seja, ela não deveria necessariamente estar descalça ao receber o par de sapatos.

Comecei a ficar impaciente com o rumo que a nossa conversa estava tomando. No fundo, acredito que estava me usando para resolver o seu caso. Despedi-me justificando que tinha outras coisas para resolver. Ele continuou na sapataria, entretido com o que restava dos espelhos para pés.