Mesa do canto

sol-enganador

Antes mesmo de aproximar a lupa, notei uma feição alegre no seu rosto, que aumentava quanto mais examinava o meu corpo. Enquanto isso, tentava esclarecê-la sobre a situação: começou aqui, agora foi parar também no braço e nas costas; à noite é que fica difícil, coça muito. Seus olhos não desgrudavam da lupa, e sequer dava algum sinal de que me ouvia. Levantou-se, foi até a mesa e abriu uma gaveta. Olhou pro meu braço, voltou a olhar pra gaveta. Acariciou o queixo enquanto seus olhos brilhavam. “Tem como você voltar aqui amanhã?”, perguntou, “não precisa nem falar com a secretária, só chegar e bater na porta. Às dez da manhã, pode ser?”. Mas o que eu tenho, doutora? “Não se preocupe, não se preocupe”, disse ao mesmo tempo em que se levantava e abria a porta. Apesar de não ter nenhum esclarecimento sobre o que se passava comigo, só me restou ir embora.

Da clínica segui a pé para um bar que fica a duas quadras dali. Tinha marcado de encontrar um amigo, sabendo que sairia da consulta nesse horário em que renovamos os ânimos por conta da sensação de que a parte mais chata do dia terminou. Quando cheguei, tive que fazer um movimento brusco pra que a dona do bar notasse a minha presença. Metade do seu corpo estava voltada pro balcão, mas seus olhos miravam um pequeno espelho colocado de improviso na prateleira de bebidas: parecia estar preocupada com alguma coisa na parte de trás do seu ombro esquerdo. Ao me ver, acenou numa economia de gestos que simultaneamente me cumprimentava e dava a entender que serviria a bebida de costume. Perguntei sobre o rapaz que a vinha ajudando nas últimas semanas. Disse que era um à toa, que pela segunda vez tinha inventado uma doença. Se for pra faltar serviço, fico sozinha, que é de graça — completou.

Apesar de o sol já ter começado a desistir da sua crueldade diária, peguei uma mesa no canto, sombreada pela marquise, não pelo toldo. Meu amigo chegou atrasado uns quarenta minutos, algo que não era do seu costume — na verdade, imaginei que chegaríamos juntos. Acenou pra mim da calçada e foi direto pegar algo pra beber. Nesse meio tempo, ensaiei mentalmente algumas maneiras de introduzir o relato sobre o que tinha acabado de se passar comigo no consultório. Talvez começasse falando sobre o contentamento da médica ao olhar pra gaveta, como uma criança que guarda seu brinquedo favorito antes de dormir.

“Que foi com ela? Não para de cutucar as costas”, apontou com o beiço o rumo do balcão e disse puxando a cadeira com a mão direita enquanto segurava o copo com a mão esquerda. Até agora? Quando cheguei foi a mesma coisa, respondi. Depois me calei. Achei que o motivo do seu atraso daria ensejo pra que começasse a falar, mas, pelo visto, acreditava ter chegado na hora marcada. Apenas o observei: ajustou o corpo na cadeira, cruzou as pernas, deu um gole e depositou com cautela o copo sobre a mesa. Parecia estar sozinho, inteiramente dedicado aos próprios movimentos. Assim que tirou os olhos da mão que segurava o copo, disse que estava numa clínica ali perto, que tinha marcado uma consulta pra saber de uns pontinhos que tinham brotado recentemente na sua pele. Aparentemente, foi em vão, porque a médica não disse nada a não ser pra voltar no dia seguinte. Mas o que mais o intrigou foi o sorriso dela antes de se despedir, numa despedia forçada, meio que o empurrando gentilmente pra fora.

Acho que a sua história foi a mesma que eu iria contar. Resolvi então ficar calado, pra não pensar que eu estava apenas repetindo o que acabou de dizer. Não sei quanto tempo ficamos olhando o movimento da rua — e uma vez ou outra dando um trago na bebida. O silêncio só foi cortado quando me disse: que bom que pegamos a mesa do canto.