Grifo Nosso

o tempo
entre o sopro
e o apagar da vela

(Paulo Leminski)

alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos, bastava afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso, os lenços dos homens antes estendidos como salvas pra resguardar a pureza dos lençóis, bastava afundar as mãos pra colher o sono amarrotado das camisolas e dos pijamas e descobrir nas suas dobras, ali perdido, a energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo do púbis, e nem era preciso revolver muito para encontrar as manchas periódicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou escutar o soluço mudo que subia do escroto engomando o algodão branco e macio das cuecas, era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino, conhecer os humores todos da família mofando com cheiro avinagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja. (Nassar, Lavoura arcaica)

Tive a sensação de que poderia nadar quilômetros, até o alto-mar; um desejo de liberdade, um impulso de me mover me puxava como se fosse um fio amarrado no meu peito. Era um impulso que eu conhecia bem, e havia aprendido que não era o chamado de um mundo maior, como eu antes acreditava que fosse. Era simplesmente um desejo de escapar do que eu tinha. O fio não conduzia a lugar nenhum exceto a vastidões de anonimato que não paravam de crescer. Eu podia nadar mar adentro até onde quisesse, se o meu desejo fosse me afogar. No entanto, esse impulso, esse desejo de ser livre, continuava a me atrair; de alguma forma eu ainda acreditava nele, apesar de ter provado que tudo nele era ilusório. (Cusk, Esboço)

Matar alguém e dar nascimento a alguém são duas ações violentas através das quais, magicamente, o homem tenta colocar-se no lugar de Deus. A vítima de um homicídio é sempre indefesa, porém jamais tão indefesa quanto a vítima de um nascimento. Um parto tem tanto sangue inocente quanto um homicídio. Se procriar é uma opção livre, então a vida é a dor inútil fundamental. (Cabrera, Projeto de ética negativa)

E o pobre indivíduo que olha para fora e se ditrai, que medita, inconclusivo, dentro de seu torpor meio pasmado, aquele para quem, usando a velha expressão, a vida passou na janela, este foi, acreditem, quem mais se aproximou do que nela é direto e despido — aquele que abre mão de deixar neste mundo o duplo de sua vitalidade (uma obra literária, dinheiro, uma lancha, uma família), aquele que a cada momento não sabe bem o que está fazendo, onde está pisando (que erra o passo e tropeça na poça do meio-fio), o perdulário, o bêbado renitente, o sonado, o suicida que nunca se mata, o palhaço de Shopping, o marido traído, aquele que fita o muro. (Nuno Ramos, Ó)

Biff uncorked the bottle. He stood shirtless before the mirror and dabbed some of the perfume on his dark, hairy armpits. The scent made him stiffen. He exchanged a deadly secret glance with himself in the mirror and stood motionless. He was stunned by the memories brought to him with the perfume, not because of their clarity, but because they gathered together the whole long span of years and were complete. Biff rubbed his nose and looked sideways at himself. The boundary of death. He felt in him each minute that he had lived with her. And now their life together was whole as only the past can be whole. Abruptly Biff turned away. (McCullers, The heart is a lonely hunter)

É de manhã que é preciso se esconder. As pessoas se levantam, frescas e dispostas, sedentas de ordem, beleza e justiça, exigindo a contraparte. (Beckett, Molloy)

Uma cama nos vê nascer e nos vê morrer, teatro inconstante em que o gênero humano encena, dia após dia, dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias espantosas. — A cama é um berço enfeitado de flores; — é o trono do amor; — é um sepulcro. (De Maistre, Viagem ao redor do meu quarto)

Pessoas felizes não são interessantes. (Coetzee, Juventude)

Um jovem jardineiro persa diz para seu príncipe:
— Salve-me! Encontrei a Morte esta manhã. Fez-me um gesto de ameaça. Esta noite, por um milagre, gostaria de estar em Isfahan.
O bondoso príncipe lhe empresta seus cavalos. De tarde, o príncipe encontra a Morte e lhe pergunta:
— Por que, esta manhã, fez um gesto de ameaça a nosso jardineiro?
— Não foi um gesto de ameaça – responde-lhe –, mas um gesto de surpresa. Pois o via longe de Isfahan esta manhã e devo pegá-lo esta noite em Isfahan. (Jean Cocteau, Le grand écart)

Não contai um homem feliz até que ele esteja morto, e livre, por fim, de toda dor! (Sófocles, Édipo rei)